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terça-feira, 7 de maio de 2024

Sobre paternidade flexível

 Olá, você que já não está aqui.


Eu tenho pensado nessa carta há vários dias, mas nunca sabia muito bem por onde começar. Entendia que queria e precisava, mas faltava aquela coisa lá no fundo, uma indignação que não sentia há muito tempo.

Uma vez, conversando pelo telefone, tivemos uma briga interminável, uma daquelas DRs que a gente tinha e que nos custava tanto. Enfim, naquele dia você disse algo que me marcou até hoje: “eu faço o que eu posso pelo nosso filho”. Eu me lembro do lugar em que estava, do lado de fora de uma agência bancária, na frente da MPI, no centro do Rio. Tamanho foi o meu choque que mais de 10 anos depois eu ainda me lembro do som da minha indignação. 

A pessoa que tinha ido embora quando o filho tinha pouco mais de 7 meses, que mandou eu me virar quando liguei na primeira vez que ele foi internado, que não podia contribuir enquanto eu vendia meus livros para comer, que nunca esteve presente em um só aniversário em todos os anos que esteve vivo, que deixava o bebê no chão para jogar quando eu precisava tomar banho, que não fazia um esforço para ver o filho nas férias, que só foi pagar pensão depois da morte. Você fazia o que podia.

No dia eu respondi que não fazia o que podia, mas o que o nosso filho precisava. 

E é isso, muitas vezes nossos filhos precisam de coisas que vão além do que a gente pode e faz parte de sermos pais e mães. Eu poderia passar anos falando de todas as vezes que vi pais e mães indo além do possível para manter seus filhos vivos, saudáveis e felizes. Poderia passar parte dessa carta falando de todas as coisas que eu fiz um dia, mas isso é infrutífero por dois motivos.

Primeiro, não quero idealizar a maternidade. Nem mesmo a paternidade, se quer saber. Nem sempre conseguimos fazer tudo que precisamos, nem sempre temos o equilíbrio necessário para enfrentar as coisas com graça. Muitas vezes odiamos passar por aquela situação, muitas vezes queríamos apenas ir embora.

Segundo, essas palavras não são sobre mim. Não importa o que eu fiz ou deixei de fazer. Nosso filho está aqui, um homem adulto, responsável, saudável e uma das melhores pessoas que eu conheço. Só isso importa.

E apesar de nós dois já termos passado por tudo isso, me vejo hoje, refletindo e experimentando outros tipos de flexibilização da paternidade. 

Quando falam que o pai só vê seus filhos do referencial da sua relação com a mulher, eu tenho dificuldade de aceitar e acreditar. Não é possível que se ame uma criança e a veja como a extensão de alguém. Como não perceber que aquele pequeno ser humano tem suas próprias necessidades e características? 

Não entendo colocar toda a história vivida com aquela pessoa dentro de um lugar egocêntrico. Nossos filhos não estão lá para o nosso proveito. Filho não é nosso legado ou qualquer coisa nesse sentido, são pessoas reais que existem neste momento e precisam de muitas coisas para se desenvolver.

Ontem, a Diana, minha filha mais nova, passou a madrugada acordada. Pelo menos duas horas chorando e foi dormir soluçando no meu colo. Há meses ela não dormia no colo, mas essa noite ela agarrou na minha perna e não queria soltar. Quando tentei sair, ela acordou e chorou mais, então eu deixei. Era mais de 5:50 quando consegui deitar na minha cama, tudo isso para as 6:30 levantar de novo para levá-la na escola.

E o que isso tem a ver com a carta? Ontem um dos pais dela veio aqui em casa levar suas coisas embora. Depois de me mandar uma mensagem falando que não conseguia estar perto da própria filha porque não conseguia lidar com o término da relação. Ele veio, não passou tempo com ela depois de mais de 10 dias sem vê-la, não a colocou pra dormir como fazia de vez quando, não se atentou que talvez a criança tivesse sentimentos. Apenas levou tudo que podia e ela ficou aqui, sem entender o que estava acontecendo.

Novamente me vejo pensando no que podemos fazer e no que é necessário fazer. 

Hoje era necessário que ela estivesse na escola, hoje será necessário que ela vá na consulta com a fonoaudióloga e com a TO. No fundo, a falta de sono, as coisas que eu preciso fazer, ficaram em segundo plano. É o que ela precisa no momento.

Então eu pensei em você e em tudo que passamos juntos.

Bom, se existe uma vantagem nesse mundo de ter vivido as coisas é a experiência que adquirimos. Eu posso olhar para o futuro, ver meu filho adulto e pensar que essas coisas passam. Que vivemos para além das tristezas. Os momentos bons acabam sendo vastos e mais importantes. 

Porém, hoje não vou me furtar de odiar, de chorar e xingar. Talvez uma parte de mim sempre vá se lembrar de você quando eu sentir essa necessidade, neurose minha, quem sabe. Hoje, de novo, vou fazer o que é preciso e não apenas o que eu posso.

Vou tentar confortá-la quando estivermos juntas, tentar mostrar que o mundo continua girando e que o que precisamos nessa vida é coragem (já diria o poeta). Vou deixar o que eu posso fazer para outra ocasião.

Não tenho palavras amenas para me despedir, mesmo porque nem sei o que existe depois da vida. Muitas vezes gostaria de ter o conforto de saber que teríamos outras chances de arrumar nossos erros, outras anseio que a morte seja só o fim. Porém, na literatura, tudo que existe ainda está presente, então, até logo. Eu sei bem que ainda temos coisas para resolver, mesmo que seja só dentro de mim.


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