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quarta-feira, 12 de junho de 2024

O primeiro dia dos namorados

 — Amoraaaaaaa…

Enquanto a mais nova apoiava a testa na mesa branca, que era a companheira das duas, a mais velha tomava mais um gole de cerveja e esperava o pequeno surto passar. Ao perceber que o silêncio ia se estender, ela tomou a iniciativa.

— Que foi, amiga?

— Eu tô ferrada, muito ferrada.

Mas dessa vez, antes que ela pudesse continuar, a revelação veio cortar a respiração no meio.

— Eu tô apaixonada.

O riso subiu até o rosto da mais velha, que não ousou deixar sair a gargalhada que estava presa.

— E você só foi perceber agora, amora?

— Não ri de mim…

Ao ver que era sério, pelo menos sério o suficiente, a mais velha pousou o copo e estendeu a mão.

— Mas, amora, é óbvio que você está apaixonada. Vocês estão juntos faz um tempinho… mesmo antes de vocês ficarem, era bem perceptível. E depois, você nunca foi muito boa em esconder isso.

— É, né?

O olhar manhoso da mais nova era engraçado de ver.

— Então, do que se trata?

— Semana que vem é dia dos namorados…

— Uhum — era apenas a confirmação para a outra continuar a falar.

— E eu não sei como me comportar.

— Como assim?

— Ah, eu devo comprar um presente? Devo falar alguma coisa? Eu nem sei se estamos namorando!

A cabeça voltou a tocar a mesa, mas dessa vez a mulher confusa foi com a mão até o copo e em um malabarismo deu um jeito de beber sem deixar cair. Mas como era uma manobra perigosa, achou melhor sentar ereta e olhar para o céu noturno.

— Mas vocês conversaram sobre isso?

— Mais ou menos… tenho medo de parecer louca com tudo isso, com esse furacão que estou sentindo. Ele nem gosta de ficar conversando sobre sentimentos e eu só estou, sei lá, aproveitando enquanto dá. Você sabe que temos prazo e limites… tantos limites.

A mais nova olhava para as estrelas agora, tentando fazer o coração pulsar com um pouco mais de compostura. Eles se conheciam há tão pouco tempo que achava um exagero sentir tudo isso, mas outra coisa dentro dela mandava tudo se ferrar e apenas se permitir.

— Mas você está feliz?

A pergunta veio como um raio de luz no meio da turbulência, baixa em primeiro momento, até que trouxe a amiga de volta para a conversa, como o fio de Ariadne.

— Pra caralho e isso me assusta.

Dessa vez o sorriso que brotou no rosto da mais velha não foi de graça da situação, mas de afeto pela melhor amiga. Ver a amiga feliz, depois de tantas coisas, era tudo que a outra queria.

— Então pronto, só aproveite. Não fique pensando demais em tudo isso. Deixa as coisas acontecerem como elas tem que acontecer.

As mulheres se olharam com carinho e permaneceram de mãos dadas por um tempo, até que a mais nova começou a rir.

— Eu pareço uma adolescente, né?

Sem responder, as duas só se permitiram sorrir e aproveitar a companhia uma da outra.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Sobre paternidade flexível

 Olá, você que já não está aqui.


Eu tenho pensado nessa carta há vários dias, mas nunca sabia muito bem por onde começar. Entendia que queria e precisava, mas faltava aquela coisa lá no fundo, uma indignação que não sentia há muito tempo.

Uma vez, conversando pelo telefone, tivemos uma briga interminável, uma daquelas DRs que a gente tinha e que nos custava tanto. Enfim, naquele dia você disse algo que me marcou até hoje: “eu faço o que eu posso pelo nosso filho”. Eu me lembro do lugar em que estava, do lado de fora de uma agência bancária, na frente da MPI, no centro do Rio. Tamanho foi o meu choque que mais de 10 anos depois eu ainda me lembro do som da minha indignação. 

A pessoa que tinha ido embora quando o filho tinha pouco mais de 7 meses, que mandou eu me virar quando liguei na primeira vez que ele foi internado, que não podia contribuir enquanto eu vendia meus livros para comer, que nunca esteve presente em um só aniversário em todos os anos que esteve vivo, que deixava o bebê no chão para jogar quando eu precisava tomar banho, que não fazia um esforço para ver o filho nas férias, que só foi pagar pensão depois da morte. Você fazia o que podia.

No dia eu respondi que não fazia o que podia, mas o que o nosso filho precisava. 

E é isso, muitas vezes nossos filhos precisam de coisas que vão além do que a gente pode e faz parte de sermos pais e mães. Eu poderia passar anos falando de todas as vezes que vi pais e mães indo além do possível para manter seus filhos vivos, saudáveis e felizes. Poderia passar parte dessa carta falando de todas as coisas que eu fiz um dia, mas isso é infrutífero por dois motivos.

Primeiro, não quero idealizar a maternidade. Nem mesmo a paternidade, se quer saber. Nem sempre conseguimos fazer tudo que precisamos, nem sempre temos o equilíbrio necessário para enfrentar as coisas com graça. Muitas vezes odiamos passar por aquela situação, muitas vezes queríamos apenas ir embora.

Segundo, essas palavras não são sobre mim. Não importa o que eu fiz ou deixei de fazer. Nosso filho está aqui, um homem adulto, responsável, saudável e uma das melhores pessoas que eu conheço. Só isso importa.

E apesar de nós dois já termos passado por tudo isso, me vejo hoje, refletindo e experimentando outros tipos de flexibilização da paternidade. 

Quando falam que o pai só vê seus filhos do referencial da sua relação com a mulher, eu tenho dificuldade de aceitar e acreditar. Não é possível que se ame uma criança e a veja como a extensão de alguém. Como não perceber que aquele pequeno ser humano tem suas próprias necessidades e características? 

Não entendo colocar toda a história vivida com aquela pessoa dentro de um lugar egocêntrico. Nossos filhos não estão lá para o nosso proveito. Filho não é nosso legado ou qualquer coisa nesse sentido, são pessoas reais que existem neste momento e precisam de muitas coisas para se desenvolver.

Ontem, a Diana, minha filha mais nova, passou a madrugada acordada. Pelo menos duas horas chorando e foi dormir soluçando no meu colo. Há meses ela não dormia no colo, mas essa noite ela agarrou na minha perna e não queria soltar. Quando tentei sair, ela acordou e chorou mais, então eu deixei. Era mais de 5:50 quando consegui deitar na minha cama, tudo isso para as 6:30 levantar de novo para levá-la na escola.

E o que isso tem a ver com a carta? Ontem um dos pais dela veio aqui em casa levar suas coisas embora. Depois de me mandar uma mensagem falando que não conseguia estar perto da própria filha porque não conseguia lidar com o término da relação. Ele veio, não passou tempo com ela depois de mais de 10 dias sem vê-la, não a colocou pra dormir como fazia de vez quando, não se atentou que talvez a criança tivesse sentimentos. Apenas levou tudo que podia e ela ficou aqui, sem entender o que estava acontecendo.

Novamente me vejo pensando no que podemos fazer e no que é necessário fazer. 

Hoje era necessário que ela estivesse na escola, hoje será necessário que ela vá na consulta com a fonoaudióloga e com a TO. No fundo, a falta de sono, as coisas que eu preciso fazer, ficaram em segundo plano. É o que ela precisa no momento.

Então eu pensei em você e em tudo que passamos juntos.

Bom, se existe uma vantagem nesse mundo de ter vivido as coisas é a experiência que adquirimos. Eu posso olhar para o futuro, ver meu filho adulto e pensar que essas coisas passam. Que vivemos para além das tristezas. Os momentos bons acabam sendo vastos e mais importantes. 

Porém, hoje não vou me furtar de odiar, de chorar e xingar. Talvez uma parte de mim sempre vá se lembrar de você quando eu sentir essa necessidade, neurose minha, quem sabe. Hoje, de novo, vou fazer o que é preciso e não apenas o que eu posso.

Vou tentar confortá-la quando estivermos juntas, tentar mostrar que o mundo continua girando e que o que precisamos nessa vida é coragem (já diria o poeta). Vou deixar o que eu posso fazer para outra ocasião.

Não tenho palavras amenas para me despedir, mesmo porque nem sei o que existe depois da vida. Muitas vezes gostaria de ter o conforto de saber que teríamos outras chances de arrumar nossos erros, outras anseio que a morte seja só o fim. Porém, na literatura, tudo que existe ainda está presente, então, até logo. Eu sei bem que ainda temos coisas para resolver, mesmo que seja só dentro de mim.


terça-feira, 23 de abril de 2024

Sobre amar uma neurodivergente

Essa carta é para você e qualquer pessoa que um dia possa me amar.


Olá, camada fria desse furacão.

Eu queria falar com você sobre gatilhos.

Sempre que penso nisso me lembro da introdução que o Gaiman fez em seu livro “Trigger Warning”, uma coletânea de contos maravilhosos. Um dia eu queria ter te mostrado o meu e te lido juntos para falarmos sobre isso também, mas não acho que vá acontecer. Viu, a carta nem começou e eu já estou tergiversando. Bom, o Gaiman escreve: “E o que aprendemos sobre nós mesmos nesses momentos em que o gatilho é apertado é que o passado não morre. Certas coisas ficam à espreita, esperando pacientemente por nós, em passagens sombrias das nossas vidas”. Eu sinto que muitas vezes a internet banalizou o termo, mas é exatamente isso, um alçapão que se abre sob nossos pés e nos absorve completamente.

Não são apenas neurodivergentes que possuem gatilhos, claro. Pessoas com traumas de todo tipo ou fobias passam pela mesma coisa. Porém, quando se está lidando com alguém com tudo isso junto, fica levemente pior. Tente misturar ansiedade com um evento traumático e veja o que sobra depois.

Esses cacos são os pedaços da psique que vamos recolhendo aos poucos e montando para criar uma imagem agradável (tomara). Mas aquele espaço que se perdeu ou estragou, não volta, ele faz parte da imagem final. Essa figura complexa é uma que muitas vezes evitamos olhar, focando nas partes bonitas e amenas. Porém, é o que somos. 

Para quem está de fora, muitas vezes (a grande maioria) é difícil entender e contemplar o todo. Acho que no fundo todos somos um pouco assim, um lago profundo que só se pode descobrir mergulhando. E quanto mais fundo, mais assustador. Entretanto, existe outra forma de alcançar intimidade de verdade? Aquela intimidade que se consegue com o tempo, milhares de horas juntos, diálogos intermináveis, tretas e reconciliações. Aprendemos mais sobre alguém em seus momentos difíceis que nos fáceis.

Dito isso, como proceder em momentos de gatilhos? 

Primeiro de tudo, nunca, mas nunca mesmo, me chame de louca. Ou implique que não sou normal, natural. O estigma de ser neurodivergente é pesado, muitas vezes pensamos que somos mesmo loucos. Quando uma voz externa, vinda de quem nos importamos, se soma com a pior voz que existe na nossa cabeça, a coisa fica feia. Eu entro em um estado de autodepreciação que me custa demais para sair. Quando me ver falando algo como “eu sou mesmo louca”, quer dizer que já estou nesse estado mental, cuidado.

(Será que se eu criar tópicos fica mais fácil de ler? Mas isso faria essa carta parecer um infográfico e eu queria mais um diálogo que uma aula.)

Segundo, mesmo que você não entenda, respeite. Parece simples, mas não é. Quando vemos que alguém está precisando de ajuda, costumamos querer resolver ou mesmo entender na hora. Porém, a pessoa que está em gatilho não vai ser capaz de elaborar mais que algumas frases e nem sempre tão eloquentes quanto deveriam. Sim, mesmo eu que tento ser tão lúcida na maior parte do tempo. Quem não me conhece tão bem, acha que eu sou uma pessoa muito capaz o tempo todo, muito equilibrada. Mas isso está muito longe da verdade.

Então no momento crucial, acolha. Acho que faz parte do parágrafo anterior, mas queria destacar essa frase em especial. Mesmo que você não entenda perfeitamente, teremos tempo para descobrir e conversar depois. No fundo, todos queremos isso, não é? Sermos acolhidos e aceitos nas nossas diferenças.

Acho que por último, não vou fazer um tratado de mil páginas, não me culpe pela minha divergência. Não que você tenha feito isso, mas como é um tema recorrente na minha vida, achei melhor falar logo. Já aconteceu e duvido que foi a última vez.

Eu coleciono momentos de desamparo, onde pessoas que eu me importava olharam para meu lado ruim e se afastaram. Pessoas que me prometeram amor e me abandonaram com a desculpa que eu sou “intensa”. Que me viram durante uma crise de pânico, me deixaram em casa e foram embora. E ainda pessoas que se aproveitaram da minha ansiedade para me manipular e machucar. Essas são aquelas peças que eu comentei lá em cima, os fragmentos que não posso apagar se quiser ser completa. Faz parte de mim e vem junto com o pacote das coisas boas.

A mulher gentil, amorosa, culta e inteligente é uma parte apenas, que não vem sozinha. Querer viver apenas as partes boas é o mesmo que querer uma boneca em um pedestal, uma coisa que não se parece com uma pessoa real. Quanto mais incríveis as pessoas são, mais elas carregam consigo, acho que essa é uma coisa que concordamos.

Eu sou real, complexa e sim, difícil.

E me sentir abandonada, de novo, por ser quem eu sou, me machuca profundamente. Não, eu não vou morrer, ninguém morre disso. É só mais uma parte de uma imagem maior que esperamos ser mais brilhante que sombria no final.   


Cartas geralmente terminam com uma saudação, não é? Então, espero que a vida te trate bem e que encontre felicidade na paz que tanto busca. Eu, por enquanto, vou continuar sendo o que posso. Eu mesma, completa.


quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Tão perto e tão longe

Se pudesse apenas esticar os braços poderia tocá-lo
Mas meu medo impede que eu faça, me impede que eu continue
Como consigo amar e ao mesmo tempo me encolher?
Mas entendo, não liberta porquê o amor é só meu.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Esperando

Ela estava na arquibancada esperando ele passar. Ele sempre passava por ali na hora do intervalo e olhava para cima, para ela. Pelo menos era o que parecia. E ela sempre achou o menino lindo e estava animada. Cada dia ia mais arrumada para tentar impressionar. Afinal, como chamar a atenção sem falar?
Mas por quê não falava? Ah, meninas não chegam em meninos, oras, é claro!
Mas ela dava sinais. Aqueles de sorrir, jogar o cabelo, olhar mais demorado.
Ele ia perceber, claro que ia. E logo ia olhar e ir até ela. Assim esperava.


Ele estava passando, nervoso. Há algum tempo era interessado nessa menina, linda linda. E por isso mesmo, inalcançável. Como uma menina que sempre estava arrumada e bonita poderia gostar de um cara como ele, super simples. E ela sempre estava sorrindo, com os cabelos ao vento, parecia um comercial. Nunca que ela daria bola. E pra quê chegar em alguém que vai te dar um fora? Po**a! Essas meninas são assim, não sabem como é difícil tomar uma atitude.
Era melhor deixar pra lá. E ele continuava esperando alguém que gostasse dele.


Ele chegou passou por ela aquele dia e não olhou.